quarta-feira, 16 de maio de 2012


Comissão da Verdade quer criar “Wikipédia da ditadura”

Em regimento que será discutido hoje será aberta a possibilidade de abrir arquivos para contribuição de internautas

Wilson Lima, iG Brasília 
Foto: Agência BrasilPresidenta Dilma Rousseff empossa hoje membros da Comissão da Verdade
Oficialmente, a Comissão da Verdade, cujos sete membros serão empossados hoje a partir das 11h pela presidenta Dilma Rousseff, terá dois anos para “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos” praticadas entre 1964 e 1988. No entanto, na primeira reunião dos sete membros do órgão, também marcada para hoje, será discutida a possiblidade de ampliar essas apurações por um tempo indeterminado.
Isso porque, na proposta de regimento interno da Comissão da Verdade, ao qual o iG teve acesso, discute-se uma maneira de abrir os arquivos resultantes da investigação para acesso dos internautas. A ideia é achar uma fórmula para que pessoas que não possam ser ouvidas diretamente pela Comissão também deem a sua contribuição pela internet. Seria uma espécie de Wikipédia da ditadura. Dessa forma, mesmo com o final da investigação formal, abre-se uma brecha para continuar as discussões sobre crimes ocorridos durante o regime militar.
Uma outra discussão que ocorrerá dentro da Comissão da Verdade é a possibilidade de renúncia à eventuais ajudas financeiras. No esboço do regimento interno, um artigo abre a possibilidade para que os membros renunciem a qualquer ajuda de custo da iniciativa privada para o desenvolvimento dos trabalhos do órgão. O art. 8º da lei que instituiu a Comissão da Verdade (a nº 12.528, de 18 de novembro de 2011) autoriza a Comissão a também capitar recursos por meio de instituições de ensino superior ou organismos internacionais. Pela lei, os membros terão direito a salário de R$ 11,1 mil mais diárias e passagens para deslocamentos fora de seu domicílio.
A proposta do regimento interno da Comissão da Verdade também prevê a inexistência da figura do presidente. Haverá um coordenador com mandato de três meses. A exceção será o primeiro coordenador cujo mandato será de seis meses. O primeiro mandato será mais longo por dois motivos: garantir a tranquilidade para a resolução de problemas burocráticos ligados à instalação do órgão (nomeação de assessores e definição de local/locais de trabalho, entre outros) e possibilitar que todos os membros tenham a oportunidade de coordenar os trabalhos durante um determinado período. O primeiro coordenador deve ser o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Gilson Dipp.
As reuniões da Comissão da Verdade devem acontecer a cada 15 dias, embora na proposta de regimento interno, sejam colocadas outras duas opções: reuniões semanais e mensais. A primeira opção é vista como cansativa por alguns membros; a segunda, como excessivamente distante para a discussão de determinados assuntos. Provavelmente a Comissão será sediada em Brasília.
Foto: Agência BrasilGilson Dipp: cotado para ser primeiro coordenador da Comissão da Verdade
Na primeira reunião também será definido o foco das primeiras investigações da Comissão da Verdade. A ideia a princípio é ater-se aos crimes mais graves, como torturas e casos de assassinatos. O ex-ministro da Justiça, José Carlos Dias é simpático à possibilidade de que crimes cometidos pela esquerda também sejam investigados. A própria Comissão já tem uma lista com 119 crimes deste gênero, conforme o iG antecipou ontem. Mas a tendência é que cerca de 70% da investigação se atenha a atos cometidos pelo Estado durante o regime militar.
Um nome dado como certo para o início das investigações da Comissão da Verdade é o ex-delegado do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) do Espírito Santo Cláudio Guerra. Ele fez várias revelações sobre o regime militar no livro “Memórias de uma guerra suja”. Entre as quais, ele admite ter incinerado pelo menos dez corpos de ativistas de esquerda em uma usina de açúcar.
A posse dos sete membros da Comissão da Verdade ocorrerá em uma cerimônia na qual estarão presentes os ex-presidentes José Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. A intenção da presidenta é mostrar que o órgão “não é uma comissão de governo, e sim de Estado”.
Confira quem são os membros da Comissão da Verdade
José Carlos Dias 
Nascido em 1939, José Carlos Dias é graduado em direito pela Universidade de São Pulo (USP) e foi presidente da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, foi secretário de Justiça durante o governo de Franco Montoro e ministro da Justiça do tucano Fernando Henrique Cardoso. O ministro foi demitido por FHC após criticar o então secretário antidrogas Walter Maierovitch por ter antecipado a realização de uma operação contra o tráfico. Atualmente, Dias exercia o cargo de conselheiro da Comissão de Justiça e Paz. Dias foi um dos signatários da Carta aos Brasileiros, redigida em 1977, na faculdade de Direito da USP, repudiando a Ditadura Militar. Dias também foi advogado de presos políticos e atuava diretamente na Justiça Militar, durante o regime. Nos últimos anos, Dias também vem trabalhando em favor das minorias como grupos homossexuais.
Gilson Dipp 
Foi considerado em 2009 um dos 100 brasileiros mais influentes, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é considerado um juiz rigoroso em suas decisões. Em 14 de abril, por exemplo, ele negou liminar impetrada pela defesa de Carlinhos Cachoeira pedindo a defesa do bicheiro. Ele está no STF desde 2008. Atualmente, ele tem como maior missão a reforma no Código Penal brasileiro. No novo Código estão sendo estudados atos ligados ao aborto, criminalização do enriquecimento ilícito.
Cláudio Fontelles 
Procurador-geral de República entre 2003 e 2005, Fonteles atuou no movimento político estudantil como secundarista e universitário e foi membro grupo Ação Popular (AP) que comandou a União Nacional dos Estudantes (UNE) na década de 60. É considerado um homem de centro.
Rosa Maria Cardoso da Cunha 
Hoje com 65 anos e dona de um escritório de advocacia, Rosa Maria Cardoso da Cunha foi advogada da presidenta Dilma Rousseff (PT) durante o regime militar e também de Carlos Franklin Paixão de Araújo, ex-marido da petista. Especialista em defender presos políticos, constantemente era alvo de revistas vexatórias dos militares. Houve ocasiões em que precisou ficar completamente nua na frente dos militares antes da visita de alguns de seus clientes, normalmente líderes da esquerda.
José Cavalcanti Filho 
José Cavalcanti Filho é advogado e considerado um homem com uma boa formação em direitos humanos. Foi ministro interino da Justiça e ex-secretário-geral do ministério da Justiça no governo José Sarney. É consultor da Unesco e do Banco Mundial. Foi presidente do Conselho de Administrativo de Defesa Econômica (Cade) entre 1985 e 1986. Ele também atuou como advogado de presos políticos durante o regime militar.
Paulo Sérgio Pinheiro 
Diplomata, Paulo Sério Pinheiro é considerado o homem da “experiência internacional” da Comissão da Verdade e tem uma formação sólida em causas ligadas aos Direitos Humanos. Professor da Universidade de São Paulo (USP), Pinheiro foi secretário especial de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso. Participou do grupo de trabalho nomeado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva responsável por preparar o projeto da Comissão da Verdade. É Relator da Infância da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Maria Rita Kehl 
Psicanalista, cronista e crítica literária. Foi editora do jornal Movimento, um dos mais importantes entre as publicações alternativas que circularam durante o período militar. Trabalhou nos principais veículos de comunicação do país. É autora de seis livros e vencedora do Prêmio Jabuti. É apontada como mulher com grande compromisso na defesa dos Direitos Humanos.
 

Comissão da Verdade já tem lista de 119 crimes da esquerda

Primeira reunião que será realizada em Brasília, nesta quarta-feira, debaterá quais destas ações podem ser investigadas

Wilson Lima, iG Brasília 
A Comissão da Verdade já tem uma lista com 119 crimes cometidos pela esquerda que devem ser alvo de investigação. Nessa lista, estão apontados os crimes, as vítimas, protocolo do processo, entre outras informações sobre cada um destes casos.
Segundo integrantes do órgão ouvidos pelo iG, nem todos os crimes serão apurados. Será dada prioridade ao mais emblemáticos. A lista dos casos que serão investigados começará a ser discutida nesta quarta-feira (16), a partir das 16h, durante a primeira reunião da Comissão da Verdade.
A escolha pela investigação dos crimes mais emblemáticos, entretanto, não será algo exclusivo dos crimes cometidos pela esquerda. As atrocidades contra os direitos humanos resultado de ações do Estado também serão alvo de um crivo da comissão. A ideia é igualmente direcionar as investigações para os crimes mais graves. No primeiro momento, o trabalho da Comissão da Verdade vai recair contra crimes como assassinatos, sequestros e atos de tortura durante o regime militar.
A expectativa de foco das investigações já causou uma certa polêmica estar entre dois membros da Comissão: o ex-ministro da Justiça, José Carlos Dias e a ex-advogada da presidente Dilma Rousseff (PT), Rosa Maria Cardoso da Cunha. Dias defende uma investigação ampla; Cunha defende que a Comissão foque na apuração dos crimes dos agentes do Estado.
Nesta terça-feira, por exemplo Dias evitou conversar com a imprensa sobre a Comissão da Verdade para evitar novas polêmicas. Outros membros como o ex-procurador Cláudio Fonteles afirmaram que ainda é cedo de falar em divisão do grupo. Afinal, segundo eles, as divergências de opinião em casos como esses são absolutamente normais. “Você diverge até mesmo com o seu chefe”, disse Fonteles. “Acho que precisamos nos ater a discussões maiores”, complementou.
“Não sei como a comissão pode dar certo. Mas sei como ela pode dar errado: é cada um impondo o seu ponto de vista”, anotou o escritor e advogado José Paulo Cavalcanti. Pela lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011, a Comissão terá como objetivo “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos” praticadas entre 1946 e 1988, “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. A lei não especifica se a investigação recairá sobre os crimes da esquerda ou os crimes estatais.
 

Comissão da Verdade chega com atraso ao Brasil em relação a outros países

Diferentemente dos vizinhos Argentina e Chile, comissão brasileira é instaurada quase 30 anos depois do fim do regime militar

Marsílea Gombata, iG São Paulo 
Diferentemente de países que vivenciaram pesados anos de chumbo com os regimes militares na América Latina, o Brasil inicia nesta quarta-feira os trabalhos da Comissão da Verdade com atraso em relação aos vizinhos regionais.
A Comissão da Verdade, que investigará violações de direitos humanos cometidos entre 1946 e 1988, entra em vigor quase 30 anos depois do fim da ditadura militar (1964-1985), ditanciando-se da criação de comissões oficiais da Argentina ou Chile, que surgiram logo no início do processo democrático pós-regime militar.
Foto: The New York TimesEx-líderes militares Reynaldo Bignone e Jorge Videla em julgamento em Buenos Aires (28/2/2011)
“Isso não necessariamente quer dizer que a comissão não pode fazer um trabalho digno e relevante”, observou ao iG Glenda Mezarobba, pesquisaora da Unicamp e especialista em Justiça de Transição, que ajudou na elaboração do anteprojeto de lei que criou a comissão brasileira. “Não estamos começando do zero. Não tínhamos até agora uma comissão, mas houve iniciativas como Brasil Nunca Mais (projeto de pesquisa sobre crimes da ditadura). Além disso, o Brasil abriu mais arquivos que Chile e Argentina, com exceção dos das Forças Armadas”, disse sobre documentos da Polícia Federal, Itamaraty e dos extintos SNI (Serviço Nacional de Informação) e Dops (Departamente de Ordem Política e Social).
Ela lembrou que na Argentina, logo após assumir a presidência, Raúl Alfonsín (1983-1989) criou a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), destinada a investigar os desaparecimentos forçados e produzir um relatório. Foram inspecionadas instalações policiais e militares e visitados cemitérios públicos e clandestinos, onde havia corpos não-identificados. Em setembro de 1984, nove meses depois de ouvir mais de 7 mil depoimentos e entrevistar mais de 15, mil sobreviventes, a Conadep concluiu e entregou seu relatório, com cerca de 50 mil páginas, ao presidente Alfonsín, representando um “paradigma mundial” por seu pioneirismo.
A Argentina foi também o primeiro país da região a levar peças-chave do regime militar ao banco dos réus. O ex-presidente Jorge Rafael Videla (1976-1981) e outros foram condenados durante o governo de Alfonsín, que mais tarde assinou uma espécie de perdão aos militares de menor escalão. Anos depois o ex-presidente Carlos Menem (1989-1999) indultou tanto ex-líderes militares e ex-guerrilheiros. A partir de 2003, no entanto, o governo do ex-presidente Néstor Kirchner (2003-2007) reabriu investigações sobre os crimes da ditadura, depois de a Suprema Corte de Justiça declarar as leis nulas. Os militares beneficiados com aquelas leis foram condenados e presos, e outros processos continuam até hoje.
No Chile, em 1978, foi promulgado um decreto de anistia que perdoava os crimes dos agentes do próprio Estado. Logo após tomar posse, o presidente Patricio Aylwin (1990-1994) anunciou a criação da Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação, cujo objetivo principal era “contribuir para o esclarecimento global da verdade sobre as mais graves violações de direitos” no país ou no exterior, desde que relacionadas com o Estado chileno ou com a vida política nacional. A comissão chilena despachou cerca de mil ofícios com pedidos de esclarecimentos.
Além disso, com o retorno da democracia após o regime de Augusto Pinochet (1973-1990), a Justiça decidiu limitar a anistia ao declarar as violações crimes contra a humanidade, que não prescrevem. Os casos de desaparecidos políticos continuam abertos e, nos casos em que as vítimas já foram identificadas, seus responsáveis estão presos. Ao longo de três governos, de 1990 a 2004 foram criadas varias comissões para apurar a verdade dos anos de Pinochet. Mas o ditador chileno foi condenado somente por evasão de impostos e não pelos crimes da ditadura.
O cenário é diferente no Uruguai. O regime militar no país terminou em 1985 e o pacto entre líderes militares e a sociedade civil não foi anistia, mas a chamada 'lei de caducidade', criada em 1986 e ainda em vigor. Sob ela, o Estado se "inibe a investigar e punir os crimes da ditadura". Apesar do grande debate em torno da validade da lei, os uruguaios votaram por sua manutenção em dois plebiscitos, em 1989 e 2009. A lei, no entanto, possui um artigo que permite o presidente tomar iniciativa para que a Justiça investigue e condene acusados desses crimes. Assim, o governo do ex-presidente Tabaré Vázquez (2005-2010) levou alguns nomes a julgamento, incluindo o ex-presidente Juan María Bordaberry (1972-1976), que foi condenado. O Uruguai também contou com uma comissão da verdade que trouxesse à luz informações sobre desaparecidos políticos e ainda hoje realiza buscas de ossadas das vitimas daquele período.
Contextos distintos
Guatemala e El Salvador também tiveram comissões para pesquisar violações de direitos humanos. Enquanto em El Salvador a comissão reconheceu violações do governo salvadorenho durante a guerra civil (1979-1992) contra o grupo FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional) e favoreceu a conciliação nacional, na Guatemala foram julgados como réus militares como o general Efraín Ríos Montt (1982-1983), que foi acusado de genocídio durante o regime militar.
A Espanha pós-governo do general Francisco Franco (1939-1975) decidiu seguir adiante depois da ditadura franquista mediante o pacto de não mexer no passado. Em 2007, no entanto, a Lei da Memória Histórica para mudar nomes de ruas e locais públicos que homenageavam figuras-chave do regime provocou polêmica no país. Na época, até mesmo quem se opunha ao regime argumentou que a lei reavivava sentimentos de rivalidade e ia na direção contrária do pacto que permitiu o processo democrático no país pós-Franco.
“Não adianta parte da sociedade achar que a comissão é uma forma de revanchismo”, afirmou Glenda. “Sofrimento e dor já foram gerados quando atrocidades foram cometidas”.
Segundo a especialista, o passo adiante será o Estado trabalhar em quatro deveres básicos: dever de justiça (ao identificar, processar e punir); verdade (revelar a totalidade dos fatos); reparação (não apenas a financeira, mas também o reconhecimento e perdão do Estado); e o desejo de reformar e tornar as instituições democráticas.
Funções
No Brasil, dentre os objetivos da comissão estão esclarecer circunstâncias de casos de graves violações de direitos humanos entre 1946 e 1988 e “promover o esclarecimento” de casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, mesmo no exterior. A partir da sua instalação, a comissão terá dois anos para concluir os trabalhos. A lei prevê que a comissão requisite documentos de órgãos públicos, convoque para entrevistas “pessoas que possam guardar qualquer relação com os fatos e circunstâncias examinados” e promova audiências públicas.
A legislação ainda estabelece que as atividades não terão “caráter jurisdicional ou persecutório” e que “é dever dos servidores públicos e dos militares colaborar” com a comissão. “Deve-se ter em perspectiva que uma comissão da verdade é, antes de tudo, um espaço público de memória e reconhecimento. Investigações são prerrogativas do Ministério Público e do Judiciário.”, explicou. “Não adianta reclamar: é como ir ao açougue e querer comprar sabonete.”
*Com BBC e AE
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Acusado de torturar Dilma é alvo de manifestação no Guarujá

Jovens e ex-presos políticos protestaram em frente ao prédio de Maurício Lopes Lima, acusado de ter participado da morte de seis pessoas na ditadura

Bruna Carvalho, iG São Paulo  - Atualizada às 
Cerca de cem manifestantes realizaram na manhã desta segunda-feira um ato no Guarujá, litoral paulista, em frente ao prédio onde mora Maurício Lopes Lima, militar aposentado acusado pelo Ministério Público Federal de participar da morte de seis presos políticos e torturar outras 20 pessoas, entre elas a presidenta Dilma Rousseff , durante o período da ditadura militar (1964 - 1985).
Foto: Paulo Rodrigo Iannone/DivulgaçãoLevante Popular da Juventude organizou o escracho no Guarujá, litoral paulista
Munidos de cartazes e faixas, os integrantes do grupo Levante Popular da Juventude e ex-presos políticos se uniram em coro para expôr à população local os crimes pelos quais Lima é acusado de ter cometido quando chefiava as equipes de investigação na Operação Bandeirantes (Oban) e no DOI-Codi, em São Paulo.
"Nós estamos aqui para denunciar um torturador, que sob a aparência de um senhor aposentado se esconde um monstro que torturou companheiros, políticos e estudantes. Nós viemos alertar seus vizinhos e a população geral que nós não vamos nos esquecer dos fascínoras que mataram nosso povo", afirmou Edmilson Costa, do PCB, presente no evento.
Esse tipo de ato, denominado escracho, é inspirado em movimentos semelhantes que ocorreram na Argentina e no Chile, e visa à desmoralização pública de agentes de repressão, uma vez que, juridicamente, eles não foram punidos. A não punição dos crimes da ditadura tem como base a Lei da Anistia, que perdoou os crimes cometidos entre 1961 e 1979 e foi validada pelo Supremo Tribunal Federal, em 2010. No entanto, a ONU (Organização das Nações Unidas) quer que o Estado brasileiro trabalhe para punir oficiais que praticaram tortura.
Maurício Lopes Lima é acusado de ser o torturador da atual presidenta que, na época, foi presa por integrar a organização VAR-Palmares, e de ter participado da morte de Vírgilio Gomes da Silva, o "Jonas" da ALN, organização de esquerda que defendia a luta armada.
Após escrever com letras vermelhas em frente à fachada do prédio, localizado nas Astúrias, "Aqui mora um torturador da ditadura" - letras que logo foram diluídas na calçada devido à chuva -, o grupo de jovens fez uma série de cenas, simulando sessões de tortura com choques elétricos, pau-de-arara e afogamento.
O som da bateria e dos coros chamaram a atenção das crianças de uma escola localizada em frente ao prédio do militar aposentado. Gritando "justiça, justiça, justiça", elas se amontoaram nas janelas das salas de aula para assistirem ao ato. Uma senhora, moradora do prédio há 30 anos, também chegou mais perto do portão da entrada. Ela disse que Lima vive sozinho e é seu vizinho há anos. "Eu sabia o que ele fez. Mas deviam ter prendido ele na época. Agora? Agora já passaram muitos anos", disse ela, que não quis se identificar por temer sofrer alguma represália do militar.
Arthur Muniz, morador da região, desconhecia a existência de Maurício Lopes Lima e sua história. "Eu acho que a manifestação é válida para que vizinhos saibam que tem alguém aqui que participou da ditadura como torturador. É lamentável nos dias de hoje que alguém assim continue solto, que uma pessoa dessa continue impune", afirmou.
Foto: FacebookMaurício Lopes Lima é alvo de escracho em frente ao seu prédio, no Guarujá
Segundo um funcionário do prédio, Lima estava em sua casa no momento do ato, mas não atendeu o interfone.
Comissão da Verdade
Na última quarta-feira, a presidenta Dilma nomeou os integrantes da Comissão da Verdade, que será instalada oficialmente em 16 de maio. Sua função será apurar as violações dos direitos humanos ocorridas no Brasil entre 1946 e 1988. De acordo com o texto sancionado, a comissão tem o objetivo de esclarecer os fatos e não terá caráter punitivo.
Presente na manifestação, a ex-presa política Maria Amélia de Almeida Teles, conhecida como Amelinha, disse esperar que a comissão tenha liberdade necessária para investigar os crimes cometidos na ditadura militar.
"O problema da comissão é a limitação. Foi instalada tardiamente e vem com muita fragilidade. Muito burocraticamente impedida de fazer um trabalho de investigação", disse. "(A comissão) tem que ter liberdade de investigar até as últimas consequências para apurar todas as circunstâncias, todos os agentes, o envolvimento deles, as ações criminosas, de sequestro, estupro, assassinato, desaparecimento de corpos."
Após realizar o ato em frente ao prédio, os manfiestantes deram a volta no quarteirão, entregando panfletos aos moradores para explicar a história de Maurício Lopes Lima. "O torturador mora ao lado e você nem sabia...", diz o texto.
A estudante de Artês Cênicas Lira Alli, 23 anos, integrante do Levante Popular da Juventude disse que o grupo planeja outras ações semelhantes a de hoje. "Essa luta não acaba com a Comissão da Verdade. Ela vai muito além. Nós seguiremos expondo esses crimes para a população, porque quando a população souber das atrocidades (cometidas no regime) vai querer que a Justiça seja feita", disse. Segundo Lira, hoje aconteceram, ao mesmo tempo, atos em 14 Estados do País. 
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Comissão da Verdade não vai punir, diz integrante

"Não é papel de nenhuma Comissão da Verdade processar ou punir. Isso é trabalho para o Judiciário", diz Paulo Sérgio Pinheiro

BBC Brasil  - Atualizada às 
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O comissário da ONU Paulo Sérgio Pinheiro – nomeado nesta semana para Comissão da Verdade no Brasil – deixou claro em entrevista à BBC Brasil que "punir" responsáveis por crimes cometidos durante o regime militar não é o objetivo do grupo.
"Não é papel de nenhuma Comissão da Verdade processar ou punir. Isso é trabalho para o Judiciário", disse Paulo Sérgio Pinheiro.
Foto: APEspecialista da ONU Paulo Sérgio Pinheiro foi convidado para participar da Comissão da Verdade
O jurista observa que a Lei da Anistia de 1979 – que até hoje impediu a punição de agentes do Estado envolvidos em crimes da ditadura – é um "fato" que a comissão não tem mandato para questionar.
"Nosso mandato é para escrever um relatório, mas não seremos nós que definiremos o destino desse documento. O relatório vai ter sua vida própria e eu não tenho como prever o que vai acontecer", diz.
Jurista com respeitada carreira acadêmica (hoje é professor na Brown University, no Estados Unidos) e ampla folha de serviços prestados à Comissão de Direitos Humanos da ONU (atualmente preside o comitê que investiga violações de direitos humanos na Síria), Pinheiro era desde o início apontado como presença certa na lista da presidente Dilma Rousseff para compor a Comissão da verdade.
Pinheiro diz que o Brasil deve aproveitar a experiência acumulada por outras nações em suas Comissões da Verdade para aprimorar o trabalho no Brasil.
"Desde o início do projeto acho que ele (o Brasil) se beneficiou da experiência de 40 diferentes 'comissões da verdade' criadas ao redor do mundo desde os anos 80. Acredito que podemos aprender com comissões recentes, como a do Paraguai; ou do Uruguai, que teve uma grande participação das universidades; ou do Peru", afirma.
BBC Brasil - Quando o Brasil é comparado com outros países do Cone Sul, é comum dizer que estamos atrasados em relação a eles no que diz respeito a lidar com os crimes contra os direitos humanos de regimes autoritários. É justa essa avaliação?
Pinheiro - É uma avaliação justa porque estamos criando essa Comissão da Verdade apenas 27 anos depois do fim da ditadura. Mas é injusto dizer que nada aconteceu durante o período democrático, porque em 1995 houve a decisão do Congresso de reconhecer a responsabilidade do Estado pelos crimes praticados por agentes da ditadura.
Depois disso, no governo de (Fernando Henrique) Cardoso, a Comissão de Mortos e Desaparecidos foi criada e diversas reparações foram pagas. E durante o governo Lula o mandato dessa comissão foi ampliado. Também nesse período muitos arquivos foram abertos e muita informação foi reunida. Eu acho que a Comissão da Verdade não vai começar do zero: há muito trabalho que já foi feito nesse período.
BBC Brasil - Mas a criação da Comissão em si, por que foi tão lenta se comparada a outros países?
Pinheiro - Eu não acredito que o estabelecimento de Comissões da Verdade em outros países da América Latina tenha sido um processo fácil. Olhe o caso da Argentina, por exemplo: desde o governo (de Raúl) Alfonsín houve vários avanços e recuos. Acho que nós chegamos tarde com a Comissão da Verdade, mas não sei de nenhum país latino-americano que tenha pago compensações para (os familiares dos) desaparecidos. Acho que o Brasil é a única democracia que faz isso.
BBC Brasil - O senhor acredita que alguém vai ser efetivamente punido com base nos trabalhos ou nas conclusões da comissão?
Pinheiro - Não é papel de nenhuma Comissão da Verdade processar ou punir. Isso é trabalho para o Judiciário. Nenhuma Comissão da Verdade no mundo jamais levou supostos criminosos a julgamento. 
Nossa função é apurar os fatos e circunstâncias e oferecer isso como uma fotografia honesta, complexa e completa de uma história que normalmente é contada com preconceitos e com viés ideológico. Acho que precisamos nos confrontar com a verdade. O trabalho da comissão vai ser também um exercício de contar a verdade.
BBC Brasil - Mas essas conclusões poderiam ou deveriam ser usadas depois como um meio de punir pessoas responsáveis?
Pinheiro - Essa não é nossa função. Se isso acontecer, vai ser de responsabilidade de outras instituições. Nosso mandato é para escrever um relatório, mas não somos nós que definiremos o destino desse documento. O relatório vai ter sua vida própria e eu não tenho como prever o que vai acontecer.
BBC Brasil - A Lei da Anistia vai ser tema de discussão da comissão?
Pinheiro - Não é parte de nosso mandato. Acho que a Lei da Anistia é uma realidade, um fato. A lei que estabeleceu a Comissão da Verdade descreve assim a Lei da Anistia. Não posso falar por meus outros seis colegas na comissão, mas não acho que ninguém esteja muito inclinado em iniciar controvérsias ou polêmicas a respeito da Lei da Anistia.
BBC Brasil - Agora, como estamos chegando mais tarde, o que se pode aprender com a experiência de outras comissões que já atuaram em outros países?
Pinheiro - Desde o início do projeto acho que ele (o Brasil) se beneficiou da experiência de 40 diferentes comissões da verdade criadas ao redor do mundo desde os anos 80. Acredito que podemos aprender com comissões recentes, como a do Paraguai; ou do Uruguai, que teve uma grande participação das universidades; ou do Peru. Aprendemos bastante com essas comissões e com certeza elas vão continuar a nos inspirar.
BBC Brasil - Mas algo em particular, talvez não tão óbvio ou de senso comum, que o senhor tenha observado em outras comissões deve servir de exemplo?
Pinheiro - Acho que faz muita diferença quando o governo (no poder enquanto a comissão atua) tem uma política de direitos humanos. E podemos ver no Brasil que existe há mais de 18 anos o compromisso por parte do Governo Federal em implementar uma política de direitos humanos.
Isso não significa que não tenhamos no Brasil violações dos direitos humanos, mas faz uma grande diferença o fato de os governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff terem um compromisso real no que diz respeito à revelação das verdades do regime autoritário. Eu acho que a vontade política deles, em termos de avançar com esse processo, foi uma contribuição fenomenal. E isso só é possível em um regime democrático.
BBC Brasil - O Brasil de fato tem hoje liberdade de expressão e não há sinais de violações dos direitos humanos por questões políticas. Mas como o senhor disse ainda é um país com sérios problemas de direitos humanos se considerarmos, por exemplo, a violência policial ou condições sócio econômicas. Levando isso tudo em consideração o quanto o país avançou globalmente no que diz respeito aos direitos humanos?
Pinheiro - Eu acho que há uma diferença drástica porque nestes últimos governos não houve uma negação dos problemas de direitos humanos. Diversos países negam o problema, dizem simplesmente que ele não existe. No Brasil, há transparência.
Não há um único jornalista na cadeia no Brasil e acho que isso é um grande avanço comparado a outros países na região. Políticas públicas também conseguiram tirar 20 milhões de pessoas da pobreza. E embora ainda haja violência policial, acredito que reformas importantes tenham sido feitas e que haja um reconhecimento muito maior do problema hoje em dia.
Hoje no Brasil há uma rede extraordinária de movimentos sociais em todos os frontes - seja na questão racial, feminina, homossexual, de crianças... - e acredito que essa própria Comissão da Verdade é em grande parte fruto de pressões da sociedade civil.
BBC Brasil - Tradicionalmente sabemos que a história é contada pelos vencedores. Sem procurar questionar aqui a ética ou a correção dos membros da comissão, há um predomínio de pessoas que se opuseram ao regime militar. Será que há o risco de a história como sempre ser contada pelos vencedores?
Pinheiro - Bom, na verdade se esse for o critério não somos nós os vencedores. A maioria das pessoas na comissão está entre a vítimas do regime autoritário. Mas isso me parece uma redução da realidade à existência de dois lados que na verdade não existem. Existe apenas um lado nessa realidade, que é o que foi reconhecido em 1995: que o Estado cometeu crimes violando os direitos humanos e que é obrigação do Estado buscar a verdade a respeito disso.
Acredito que meu seis colegas têm diferentes trajetórias na vida, mas não acredito que ninguém esteja interessado em preparar um relatório que seja uma vingança contra os militares envolvidos no regime autoritário. Acho que essa questão de 'dois lados' não é a maneira correta de ver o tema. A comissão está centrada nas vítimas e é o lado delas que interessa.

Jovens usam as ruas para relembrar ditadura militar

Mudança de nomes de ruas e frases em muros trazem à memória os mortos pelo regime e tentam desmoralizar acusados pelos crimes

Bruna Carvalho, iG São Paulo 
Foto: Fernando Genaro/ FotoarenaS.L. acende velas em frente ao nº 767 da rua Pio XI, onde ocorreu o Massacre da Lapa em 1976
Eles não foram vítimas diretas da ditadura militar (1964-1985) e, nos anos mais duros do regime, alguns deles nem eram nascidos. Mas isso não impediu que grupos de jovens tomassem conta das ruas e se mobilizassem para denunciar os responsáveis pelos anos de estado de exceção e para homenagear os mortos e desaparecidos da época.
Em São Paulo, traços das ações desses grupos são notados em pontos de ônibus, nas calçadas e nos muros da cidade. Uma das placas da Avenida Brigadeiro Faria Lima foi pintada de preto e, com letras brancas, se tornou AvenidaVladimir Herzog, em homenagem ao jornalista torturado e morto na ditadura, cujo atestado de óbito alegava suicídio.
“O fato de a gente ter um elevado Costa e Silva, uma rodovia Castelo Branco, só prova como somos um povo cuja memória foi roubada. Temos que homenagear os lutadores que permitiram que tivéssemos um País democrático e aberto e não ditadores e torturadores”, afirmou Rafaela Martinelli, 20 anos, integrante do Levante Popular da Juventude, um dos grupos que organiza atos em favor da punição dos crimes de tortura no Brasil.
Harry Shibata, conhecido como “legista da ditadura”, foi alvo de uma dessas ações, denominada escracho, ou esculacho. Esse tipo de movimento, inspirado em atos semelhantes que ocorreram na Argentina e no Chile, visa à desmoralização pública de agentes de repressão, uma vez que, juridicamente, eles não foram punidos.
A não punição dos crimes da ditadura tem como base a Lei da Anistia, que perdoou os crimes cometidos entre 1961 e 1979 e foi validada pelo Supremo Tribunal Federal, em 2010. No entanto, a ONU (Organização das Nações Unidas) quer que o Estado brasileiro trabalhe para punir oficiais que praticaram tortura. 
Shibata é acusado de ocultar um cadáver e assinar laudos falsos que encobriam torturas e assassinatos praticados pelo regime militar. Nas ruas próximas da casa onde ele vive hoje, em Pinheiros, foram colados cartazes denunciando ações do médico. “Sônia Maria de Moraes Angel Jones. Desaparecida política. Shibata atestou que sua morte foi consequência de tiroteio. Na verdade, Sônia foi torturada por 48 horas, estuprada com um cassetete e teve seus seios arrancados”, diz um deles. Em outro, no qual se lê “Alerta vizinho”, é dada a localização da casa de Shibata.
“A ideia é publicar. Mostrar quem são esses caras. Se eles estão impunes e soltos, pelo menos a gente vai enfiar o dedo no seu nariz e falar: ‘Você é um verme. É um ser humano menor’”, conta P.S., uma integrante da Frente de Esculacho Popular, que preferiu não se identificar por temer represálias. “A intenção é despertar a curiosidade, semear o germe. A gente acha que isso, somado a todas as outras lutas, traz informação para as pessoas”, ressalta Rafaela.
No dia 7 de abril, depois de uma passeata, a casa do médico foi pichada, e, no asfalto, uma frase com uma seta: “Shibata, legista da ditadura.”. Rafaela disse que participou do ato, mas não sabe quem pichou a casa. “A ideia era que não tivesse nenhum tipo de depredação. Mas a gente nem sempre pode controlar o que acontece”, disse.
A Frente de Esculacho Popular e o Levante Popular da Juventude são dois grupos distintos, mas há trânsito entre seus participantes em ações organizadas pelos dois movimentos. “(A Frente de Esculacho Popular) começou com um grupo de dez amigos que se mobilizavam, ou por estarem emocionalmente ligados com a causa, ou por serem parentes de vítimas, ou por estudarem direitos humanos. E aí foi crescendo”, conta P.S.
Rafaela explica que o Levante Popular da Juventude nasceu no Rio Grande do Sul, em janeiro de 2012, pautada pelo nascimento da Comissão da Verdade, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em novembro do ano passado. Com o objetivo de “esclarecer as graves violações de direitos humanos” praticadas durante o regime militar, a comissão tem dois anos para apresentar um relatório contendo o resultado das investigações, mas não vai ter um caráter punitivo. Na quinta-feira, foram anunciados os nomes dos integrantes, e, a partir da posse, no dia 16, é esperado que ela comece a funcionar de fato.
Homenagens
Para encerrar o que chamaram de Semana Nacional de Luta por Verdade, Memória e Justiça, de 27 de abril a 3 de maio, a Frente de Esculacho Popular organizou três ações simultâneas na cidade de São Paulo. Uma delas, na rua Pio XI nº767, serviu para relembrar o Massacre da Lapa. Em 16 de dezembro de 1976, a casa onde funcionava a sede do PCdoB foi alvo de uma ação do Exército, na qual foram mortos os dirigentes Ângelo Arroyo e Pedro Pomar. Um terceiro, João Batista Franco Drummond, foi detido e morreu na prisão.
No dia 3 de maio de 2012, sete jovens, com idades entre 18 e 30 anos, se reuniram por volta das 20h30 nas imediações da antiga sede do PCdoB para se preparar para a ação. Alguns deles, mais tensos, temiam estar sendo vigiados e falavam baixo sobre o que fariam.
Ao chegarem à rua, para impedir de serem vistos pela polícia, o mais velho do grupo desceu até o fim da quadra, enquanto dois ficaram na outra esquina, de vigia. O combinado era avisar por celular se vissem qualquer movimento suspeito.
Na calçada, em frente ao nº 767, onde hoje funciona um consultório médico, foram feitos seis estêncis com os rostos dos três mortos pintados de vermelho e branco. O mesmo foi feito no muro da casa. Após uma rápida reunião na esquina da rua, decidiram retornar ao local e escrever em branco: “Aqui tombaram heróis da resistência à ditadura – Massacre da Lapa.”
Cravos foram deixados ao lado dos rostos pintados no chão e três velas foram acesas.
Enquanto parte dos integrantes do grupo seguiu para o Tatuapé, na zona leste, de carro, para levar sprays de tinta e cartazes com desenhos vazados que serviriam para a ação de homenagem aos três mortos na rua Serra de Botucatu, os que ficaram na Pio XI, percorreram as ruas vizinhas e deixaram panfletos nas caixas de correio das casas. O texto explicava a história envolvendo a Lapa. “Existe um fato que talvez você não saiba que ocorreu aqui, no seu bairro. Já ouviu falar sobre o Massacre da Lapa?”
Uma terceira ação relembrou a morte de Ísis Dias de Oliveira, militante da ALN, morta em 1972. Na praça onde ela morava e que leva seu nome, também na Lapa, seu rosto foi pintado nos postes da rua, com a cor preta.
“Nunca é tarde para se revelar a verdade”
Hildegard Angel, 62 anos, foi vítima direta dos anos de repressão da ditadura militar. Seu irmão, Stuart Angel, que militava no MR-8, foi morto em 1971 e dado como desaparecido político. Posteriormente, sua mãe, Zuzu Angel, começou a travar uma luta contra o governo para recuperar o corpo de seu filho, quando em 1976 foi morta em um suspeito acidente de carro.
Por acaso, Hildegard presenciou a manifestação contra a ditadura realizada em frente à sede do clube militar, no Rio de Janeiro, onde oficiais reformados comemoravam o aniversário do golpe, em 29 de março. Na ocasião, os cerca de 300 manifestantes, que gritavam “Cadeia já para os fascistas do regime militar”, foram reprimidos pela polícia. Um deles, que jogou um ovo contra um dos militares, acabou preso.
“Esses jovens foram às ruas de maneira destemida, e foi comovente, emocionante. A maioria (dos manifestantes) era jovem. Havia mais velhos também, mas os jovens comoveram porque aquela era uma causa de outra época e eles chamaram para si”, disse ela ao iG.
“Os mais velhos estão cansados de lutar por isso sem ter qualquer resposta. Sem sucesso. Um total insucesso, ao longo de tantos anos. Eu vejo isso de maneira emocionada e comovida.”
Rosto de Ângelo Arroyo, morto durante a ditadura, é pintado na calçada em frente ao nº 767 da Pio XI, onde ocorreu o Massacre da Lapa. Foto: Fernando Genaro/ Fotoarena
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Para Hildegard, os jovens sentem carência de heróis e de missões e é “alentador” que eles abracem essa luta hoje para corrigir o que ela chama de “erro de percurso histórico”. “Essa impunidade crônica tem origem naquele momento histórico. A banalização do ser humano que a gente vê hoje e lê no noticiário, tudo isso, no meu ponto de vista, tem origem naquele momento, quando não se valorizaram as perdas, não se valorizou colocar a Justiça em primeiro lugar.”
Hildegard acredita que as ações praticadas nas ruas podem ser uma alternativa para relembrar os mortos e desaparecidos políticos e pedir por Justiça. “Não acho que se deva afrontar nem exacerbar, mas chega uma hora que é um pote até aqui de mágoa. Houve uma omissão muito grande. E nunca é tarde para se fazer correções históricas nem para se revelar a verdade.” 

Comissão da Verdade deve convocar ex-delegado Cláudio Guerra

No livro "Memórias de uma guerra suja", ele fez revelações inéditas sobre a ditadura militar e admite vários assassinatos

Wilson Lima, iG Brasília 
Foto: Agência PorãCláudio Guerra: cotado para depor na Comissão da Verdade
A Comissão da Verdade, oficialmente montada nesta quinta-feira pela presidenta Dilma Rousseff (PT), deve convidar ex-delegado do DOPS (Departamento de Ordem Político Social) do Espírito Santo, Cláudio Guerra, para prestar depoimento sobre envolvimento em crimes durante a ditadura militar.
No livro “Memórias de uma guerra suja”, dos jornalistas Rogério Medeiros e Marcelo Netto, Guerra faz várias revelações sobre o regime militar até então desconhecidas. Ele afirma que o delegado Sérgio Paranhos Fleury – titular da Delegacia de Investigações Criminais (DEIC) de São Paulo, considerado um símbolo da linha-dura do regime foi assassinado por um grupo de militares revoltados contra a abertura política no Brasil.
Em outros trechos do livro, Guerra também declara que militantes de esquerda foram incinerados em uma usina de cana de açúcar localizada no Rio de Janeiro e que os mesmos comandantes que planejaram o atentado do Riocentro foram os responsáveis pela execução do jornalista Alexandre Von Baumgarten, em 1982. Alguns personagens citados por Guerra, no entanto, desmentem trechos dos depoimentos do ex-delegado do DOPS e chegam a classifica-los como “fantasiosos”.
O advogado José Carlos Dias, conselheiro da Comissão de Justiça e Paz e um dos signatários da Carta aos Brasileiros, redigida em 1977, na faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), repudiando a Ditadura Militar, não teceu comentários sobre os relatos de Guerra. Mas ele afirmou ao iG que é importante o convite a Guerra. “Claro que ele pode ser chamado. Assim como outras pessoas”, afirmou Dias. “Temos que cumprir a lei que é procurar a verdade dos fatos e reconstituir a história da melhor forma possível”, disse.
O ex-procurador-geral de Justiça e que durante a juventude atuou como membro do grupo Ação Popular, Cláudio Fonteles, também defendeu o convite a Guerra como parte das investigações da Comissão da Verdade. “Ele pode ser ouvido, mas vamos esperar. Não somente ele, mas qualquer pessoa que venha (contribuir). Se você observar a lei que cria a Comissão da Verdade vai ver que ela tem atribuições de convidar pessoas, convocar, mas claro que sim (Guerra pode ser convocado). Porque ele revela fatos do período. Nossa missão é descobrir cada vez mais (fatos sobre a ditadura)”, declarou.
Já o escritor pernambucano José Cavalcanti Filho ressaltou que, nesse primeiro momento, “nada pode ser excluído”. “Todos podem ser chamados. Nesse caso pessoal, eu tenho um elemento adicional. É que Eduardo (Collier Filho – militante da Ação Popular Marxista Lenista) foi meu maior amigo de infância. Nós éramos as únicas pessoas de idade aproximada em um raio de um quilômetro (em Recife). Então eu fui o último amigo de Duda a vê-lo vivo e gostaria muito de poder contribuir, de saber mais ou menos o que aconteceu”, disse.
No livro “Memórias de uma guerra suja”, o ex-delegado do DOPS afirma que Eduardo Collier Filho e mais nove militares de esquerda foram supostamente incinerados em uma usina de açúcar. “Pode ser verdade, pode ser mentira. Com equilíbrio, com tranquilidade. Nós queremos apurar a verdade”, finalizou Filho.
A Comissão da Verdade será oficialmente instituída na próxima quarta-feira. Haverá uma primeira reunião de trabalho para definir detalhes operacionais da entidade. Também devem ser definidos os primeiros passos da investigação sobre os atos contra os direitos humanos cometidos durante o regime militar. A Comissão da Verdade tem dois anos para apresentar um relatório com o resultado das investigações. Ela não tem poder de polícia, nem punitivo. A intenção dela é, na visão dos seus membros, “fechar feridas” ainda abertas pela ditatura militar.

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